eu e minha metade inteira

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quinta da boa vista, quase ontem

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

das antigas....

Vermelho de sangue
            Era uma vez, há muito tempo atrás, em um lugar muito distante, um povoado de reinos que eram felizes para sempre.
             Naquele lugar muito distante e muito estranho (talvez pela distância tenha se tornado estranho ou vice-versa) toda senhora de família nobre e estruturada era rainha do território que pudesse comandar, geralmente era a idosa rainha que passava o trono para sua filha mais velha, digo geralmente, porque quando as rainhas resolviam, poderia passar o trono para uma das netas, geralmente a mais adorável. Com isso toda mulher ficava muito preocupada em ter filhas adoráveis, pois corriam o risco de perder o trono para seu próprio rebento.
            Não adiantava nenhum quebranto, durante séculos e milênios continuavam a nascer meninas belas e adoráveis, como os homens não tinham praticamente importância nenhuma nessa história, as mulheres não podiam se dar ao luxo de “liquidar com o problema” pois acabariam sem ter ninguém para passar a sua coroa.
Durante séculos tudo correu bem, as netas eram criadas longe de suas avós, uma grande e densa floresta as separavam e as mães mantinham uma lenda de um lobo muito mau que morava na floresta e impedia as meninas de irem visitar suas avós sem os olhares atentos de suas mães.
Na casa de Chapéu as coisas eram um pouco diferentes, na sua família, muito tradicional, nunca houve um caso sequer de uma neta ser coroada rainha, portanto sua mãe, um pouco descansada, deixava a Chapéu visitar a Vó de vez em quando. Ensinou-lhe um outro caminho que não era o da floresta para Chapéu ir sem medo, pois a lenda do lobo era tão real por aquelas bandas que até sua mãe acreditava nela.
Os anos passavam e Chapéu crescia, cada vez mais adorável, sua vó se apaixonava cada vez mais por ela e levando em conta seu mal estado de saúde, começava a cogitar a idéia de dar a coroa a sua querida neta.
Todos os habitantes do povoado começavam a comentar: a família mais tradicional daquelas bandas iria desmoronar perante o reina  de uma fedelhinha. Quando Dona Mãe soube chorou um dia e uma noite, logo ela, uma filha tão dedicada, não iria ser coroada rainha. O ódio começou a tomar conta daquele doce coração e as idéias macabras rodopiavam em sua cabeça e esbarravam em seus neurônios como pipas em fios de alta tensão.
Depois de tanto pranto, enxugou as lágrimas e sacudiu a cabeça para afugentar as maldades que a atormentavam, caminhou quieta até a cozinha e foi preparar uns deliciosos quitutes para a sua querida mãezinha.
Chamou Chapéu e pediu à filha para levar os docinhos para a velha rainha, já conformada, a Mãe sentia-se triste, mas um pouco orgulhosa de saber que sua pequena poderia ser a próxima a ser coroada, demonstrou seu carinho e compreensão deixando a filha visitar a sua vó querida.
A Mãe resolveu que tinha pressa em fazer os quitutes chegarem à Avó e falou para Chapéu ir pelo caminho da floresta mesmo e disse à filha que o lobo, afinal, era uma lenda para afastar as netas de suas avós e que não havia perigo não.
Chapéu, obediente, seguiu pelo caminho da floresta. Ah...Como já se sentia linda, como uma própria rainha! Sua vó já havia deixado por escrito o seu desejo em coroa-la, um segredinho das duas, só que Chapéu teria que esperar um tempo, a avozinha precisava morrer primeiro. Dedicada como ela só, Chapéu estava disposta a ajudar sua querida vó.
Ia ela pensando assim, andando, colhendo umas frutinhas e colocando na cesta, quando de repente deu de cara com o lobo!
Que bicho feio, horroroso. “Como mamãe foi capaz de me enganar?” _pensou Chapéu. “Tive a quem puxar...” Mas Chapéu com seu charminho conversou, convenceu, cativou, o lobo foi ficando manso, mole, duro e depois de tudo, acabou dormindo nos braços da Chapéu, que levantou, se vestiu e prosseguiu sua caminhada em direção a casa da vovó.
Vó adorou as frutinhas vermelhas que sua netinha colheu com tanto amor e cuidado, comeu uma a uma, sua adorável neta nem quis provar, deixando sua avozinha saborear sozinha as frutinhas que a levaram a dormir o sono eterno de um anjo. Chapéu deu meia volta e calmamente saiu pelo caminho da floresta, voltando para casa e até torcendo para reencontrar o Lobo.
Nesse ínterim, o Lobo acordou desesperado e correu, correu muito até a casa da Mãe, para contar que aquela doçura de criança na verdade era uma adolescente malditazinha que o persuadiu, que ele não conseguiu cumprir o prometido e, pelo contrário, acabou sedento nas garras dela e ...
A Mãe não podia acreditar naquilo tudo - quem mandou confiar no Lobo – um misto de ciúme e ódio, ser trocada pela filha, por conta da mãe e do seu amor!  Além do mais, matar sua cria é uma coisa, mas o que o Lobo disse que fez foi demais, ela nunca tinha tido coragem de pensar algo tão pavoroso.
Desesperada, bateu com um pau na cabeça do Lobo até mata-lo e pôs -se a correr.
Chapéu, calmamente, pulou a janela onde viu toda a cena do desespero da sua mãe, se desgrenhou e adentrou pela casa gritando e chorando acusando a Mãe de ter um caso com o Lobo e por sua avó ter descoberto, a Mãe a envenenou, usando Chapéu como arma. Ela voltando da casa da vó viu uma cena de pavor tão grande para seus olhos de menina que paralisou. Sua mãe querendo acabar com aquilo teria tentado mata-la e até o desumano Lobo se solidarizou e pôs-se entre o pau e a menina, levando a paulada fatal.
O amigo caçador, que havia chegado a casa a pouco atrás das pegadas do Lobo, após ouvir sua convincente história, tratou de achar a maldosa mãe e após caçar a fugitiva, Chapéu, já rainha e dona da coroa, condenou-a a masmorra para todo o sempre.
Agora são os gritos estridentes e horrendos da Mãe que assustam as netinhas na floresta.
Afinal, alguém tinha que substituir o Lobo.

                                                                                                11/06/98






Um comentário:

  1. Meu Deus, Dinha! Eu não lembrava de como esse conto era bom! Não estou exagerando não: você é melhor do que muita gente famosa, e não deixa a desejar nada ao livro que eu estava lendo (da escritora inglesa Angela Carter, "A câmara sangrenta"), que é também de releitura de contos "infantis". Aliás, você ia gostar muito desse livro. Mas esse teu conto, é de arrepiar. Que orgulho!

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