eu e minha metade inteira

eu e minha metade inteira
quinta da boa vista, quase ontem

segunda-feira, 16 de maio de 2011

“Por que minhas filhas se alfabetizaram com 4 anos e meus alunos ainda não sabem ler?”

Não sou mãe, não posso falar dos filhos que não tenho. Mas sou filha, e posso falar da família que tenho e porque me alfabetizei aos 4 anos. Em certa medida posso falar um pouco de todas as crianças que fomos e de como nossos filhos serão e porque meus alunos não são como nós. Posso tentar responder a pergunta e, com certeza, levantar mais um monte, inerentes a essa dura/linda tarefa de alfabetizar.
            Não havia proibição para livros, eu e minha irmã podíamos usar qualquer livro, dicionário ou enciclopédia, podíamos usar como apoio para desenhar, pôr na cabeça para quando queríamos inventar de ser manequim, podíamos usar como tijolo para a casinha e como bíblia para o padre que batizaria nossas bonecas, e é claro, podíamos ler.
            Lá em casa se lia. Lia a minha mãe e meu pai. Liam tudo que tinham pela frente: livros de literatura, política, jornal que embrulhava ovo e até bula de remédio; inclusive minha mãe colecionava bulas de remédio, ficavam catalogadas em uma pasta guardada na segunda gaveta da estante da sala, porta da direita, e nós podíamos pegar para brincar ou ler, escolhíamos. Às vezes era a mesma coisa.
            Era comum acordar de madrugada para fazer xixi e ver minha mãe sentada na janela (isso mesmo, na janela) com um cigarro numa mão, o café do lado, um ou mais gatos no colo e um livro na outra mão. Veja bem, era comum, não foi marcante porque foi extraordinário e sim porque se repetiu durante toda a minha vida de criança.
            Meu pai demorava em terminar um livro, minha mãe devorava, ambos liam. Lembro de vê-los relendo livros e perguntando por que, e diziam que cada vez que se lia uma história ela era diferente (anos depois descobri que quem se torna diferente somos nós mesmos).
            Minha mãe lia para mim e para minha irmã, sempre, toda noite ou a qualquer hora do dia. Lia o Pequeno Príncipe e Clarisse Lispector, lia. Meu pai respondia, com toda a paciência que lhe é peculiar, a qualquer pergunta: de onde vêm os bebês, o que é Cuba, o que é astro, quais são as sete maravilhas do mundo, o que é mausoléu e o que é Halicarnasso, o que é ser ateu. Tudo tinha um “purexemplo”. Era permitido questionar.
            Tínhamos papel a nossa disposição, lápis, cores. Podíamos rabiscar as paredes do nosso quarto, podíamos escrever e ler. Íamos à biblioteca com frequência, podíamos participar da maioria das conversas de adulto, as proibidas, escutávamos atrás das portas, éramos ouvidas.
            Quando chegou o tempo da escola, essa não era muito diferente de tudo que nossa vida tinha, não era tão divertida, havia mais restrições e nem sempre éramos ouvidas, mas tinha livro, lápis, papel, gente que sabia ler e que lia para a gente, gente que falava muito parecido com a gente, enfim, estávamos num lugar conhecido, num mundo que pertencíamos.
            Quando meu aluno chega à escola para se alfabetizar aos 6 anos, provavelmente nunca leu um livro, nunca pegou, brincou, cheirou um livro, em alguns casos nunca viu um livro, ninguém leu para ele a noite, talvez ele não consiga dizer o nome de 10 pessoas que saibam ler e que leiam com frequência, talvez ele não conheça ninguém que saiba ler. Lápis e papel não tem, talvez não tenha pelo resto de sua vida escolar, suas perguntas nem sempre são ouvidas, suas dúvidas não podem ser sobre o porquê das rosas terem espinhos, pois nunca leu o Pequeno Príncipe, não sabe o que um menino pode fazer com a panela na cabeça. Talvez nunca tenha realmente levado uma conversa a sério com um adulto, pois talvez ninguém queira levá-lo a sério, ou porque tudo é tão sério que não há tempo para ser ouvido.
            Quando ele chega à escola é num mundo diferente que ele se encontra, e muito cedo ele vai aprender que nesse mundo o que ele sabe não vale de quase nada. E se mesmo assim ele sentir-se encantado com tudo que viu e ouviu e quiser dar continuidade ao maravilhamento do mundo da leitura, em sua casa ele não vai encontrar similar, boa ou ruim, a escola termina em si mesmo, não tem como encontrar os seus vestígios pelas vielas e becos que percorre.
            Se no primeiro dia de aula eu pergunto para que time ele torce, e ele me responder “framengu”, eu vou corrigi-lo e dizer que o correto é Flamengo e ele se cala. Se cala porque torceu pro “framengu” desde que nasceu, fala que vai ao Maraca ver o “Framengu” e todo mundo, até então, entendeu, todo mundo fala assim, ninguém nunca achou que ele era tricolor ou alvinegro, todos sabiam que era “framengu”. Muito cedo ele aprende que o jeito dele falar é errado, feio, do morro, mas ele continua ouvindo fora da escola e continua sendo compreendido, parece que só na escola ser “framenguista” é errado. E mais tarde, quando ele tentar usar a sua fala para conseguir encontrar a letra certa para escrever, como eu fiz, você fez, ele descobre que também vai acabar escrevendo errado, pois como ele fala é muito diferente do que a professora quer, então quando ele diz “craru”, na verdade tem que escrever claro, e isso é tão difícil... Não foi para mim, nem para você porque nossa fala era muito próxima daquela da minha e da sua professora, mas a dele não. Ele demora em aprender e me pergunto se não há algum problema.
            Mas, veja bem, eu não possuo nenhum problema de aprendizagem e não sei hoje um montão de coisas que meus alunos já sabem quando entram na escola. Eu não sei descobrir só pelo cheiro da casca da laranja se ela está doce ou não, eu não sei fazer conta de cabeça tão rápido quanto ele, eu não sei diferenciar só pelo barulho quando são fogos ou quando é tiro (na verdade isso eu já aprendi), eles sabem qual tiro é de pistola, qual é de AR-15 e qual é de metralhadora, e conseguem saber quando eu nunca sei quando vai chover só olhando para o alto do morro. Eu juro, eu não tenho nenhum problema de aprendizado, eu só nunca peguei laranja do pé, nem trabalhei na barraca da feira com a minha mãe e também não é do meu cotidiano ver armas e ouvir tiros, desculpe eu passei a maior parte do tempo brincando e lendo. Mas se um aluno quiser me ensinar, eu aprendo. Pode ser difícil, ele vai ter que ter paciência, até porque eu não tenho pé de laranja no meu quintal e nem vou trabalhar na feira e também não espero vivenciar a deprimente violência que é cotidiana para meus alunos, mas eu posso aprender se ele se esforçar, se ele entender que passei toda uma vida enfiada em livros, e toda vez que tiver um barulho ele dizer: “Ó tia, escuta isso, é tiro, o barulho é seco, entende?” Se ele me der a laranja e falar: “Ó cheira, tá sentindo que o cheiro é doce, tem mais caldo, tá mais madura, tem mais gosto e é mais doce”. Mesmo não vivendo no seu mundo eu vou conseguir aprender. Mesmo não encontrando nos meus livros similar para a sabedoria dele, eu vou aprender. Ele também é só eu aprender como.
Amanda Guerra 8/4/2009

6 comentários:

  1. minha amiga... é isso!!!! a resposta que a esfinge exige p nao nos devorar a todos. aplaudo de pe´essa reflexão e acho q merece um nobel, mesmo (como faz, hein???)

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  2. Você é um anjo, e está comigo nessa, de braço dado, sei que o caminho é longo, mas o que podemos fazer se não caminhar? Pé ante pé, avante!

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  3. É somente o melhor texto sobre ensino-aprendizagem que eu já li na minha vida. E olha que já li muitos e em várias línguas. Dinha, eu não tô brincando, e agora quando a Fabi disser que vai editar o seu livro eu vou fazer coro com ela. Você é boa demais.

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  4. Bê, esse texto veio de uma pergunta que a mamãe fez e achei que era amelhor resposta, foi a melhor que pude dar, e a unica que poderia...

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  5. Sabe quando a gente começa a ler e a gente tá sentado na cadeira numa postura correta, aí a gente vai se debruçando sobre o computador, e quando percebe já tá quase abraçado com ele, e percebe que essa leitura te fez rever um filme na tua cabeça e te deixou com lágrimas nos olhos?
    Foi isso o que aconteceu comigo agorinha mesmo.
    Concordo com a Be, embora eu não tenha o conhecimento de causa dela. Esse tipo de texto ensina a ensinarem. E não o blábláblá que muitos 'educadores' falam sobre a escola.
    Eu voltei à minha infância, à sala do C.A., ao livro do primário que tinha estórias do Sítio do Pica-pau amarelo e do Ziraldo...e tinha também um texto, que foi o texto que me despertou pro que depois virou meu interesse pela Geografia, outro dia conto essa estória...sei esse texto de cor até hoje. Mas também senti o cheiro da laranja e a aflição de escutar um tiro.
    Um belo texto fincado no chão, mas extremamente sensível e sensorial. Te prende e te ensina.
    Fabianne tem sim que publicar teu livro, com esse texto dentro.

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  6. Ai Mel, fico feliz e triste ao mesmo tempo: feliz de ter os elogios e saber que são sinceros e saber que digo o que é preciso, triste de saber que ainda é preciso. vou postando outros aui sobre educação, pra gente pensar junto, o caminho é assim, só existe caminhando. Obrigada linda!

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